sábado, 19 de maio de 2012

O Brasil deveria legalizar o jogo?


SIM

O puritanismo de 1946 criou quadrilhas
Assim como as empresas elaboram, ano a ano, suas contas de lucros e perdas, as sociedades deveriam fazer, de tempos em tempos, uma avaliação objetiva dos resultados das políticas que adotaram, seja democraticamente ou impostas em períodos autoritários.
O caso Carlinhos Cachoeira nos leva a refletir sobre as consequências da proibição do jogo no país. São notórias as raízes desse senhor no jogo do bicho, a diversão lúdica mais popular do Brasil.
O bicho e os demais jogos de sorte foram proibidos no país pelo decreto-lei 9.215 de 30 de abril de 1946, editado à sombra da Constituição de 1937, a mais despótica da história.
Completaram-se, mês passado, 66 anos de sua vigência. Já é tempo de avaliar quais ganhos e prejuízos teve o tecido social brasileiro com a marginalização dessas atividades, estabelecida por um ato de força.
Os objetivos da proibição do jogo eram de caráter puritano. O preâmbulo do decreto-lei considerava "que a tradição moral, jurídica e religiosa do povo brasileiro é contrária à prática e a exploração dos jogos de azar" e "que das exceções abertas à lei geral decorreram abrigos nocivos à moral e aos bons costumes".
No dia seguinte, quem comentou a lei foi o cardeal do Rio, Jaime Câmara, no jornal "A Manhã": "A medida se impunha para elevar o nível moral e social dos brasileiros".
Os resultados não condizem com as intenções expostas na ocasião.
Sob o ponto de vista de moral e bons costumes, as consequências foram desastrosas. Assistimos à formação de quadrilhas que exploram jogos clandestinos, tanto quanto os Estados Unidos presenciaram o florescimento da máfia e de Al Capone durante a proibição de bebidas alcoólicas, entre 1919 e 1933.
Os métodos de ação, inclusive, são em tudo semelhantes: disputa por territórios, eliminação de concorrentes, lavagem de dinheiro, infiltração na política e suborno em larga escala.
A corrupção se tornou endêmica nesse campo, com exibição periódica na imprensa da promiscuidade entre contraventores, policiais, parlamentares, governantes e demais agentes públicos.
Entretanto, há outros efeitos que passam despercebidos. Um deles é a qualidade de investimento dos lucros na exploração de jogo.
Quando as apostas eram livres no Brasil, o empresário do Cassino da Urca, Joaquim Rolla, edificou o Quitandinha, em Petrópolis (RJ), à época o maior complexo hoteleiro das Américas, num tempo em que Las Vegas mal engatinhava.
Rolla construiu também empreendimentos semelhantes em diversas cidades turísticas do país. A sua notável vida está descrita no recém-lançado livro "O Rei da Roleta" (de João Perdigão e Euler Corradi, pela Casa da Palavra).
Por sua vez, o concessionário de loterias A. J. Peixoto de Castro criou a refinaria de petróleo de Manguinhos, a petroquímica Prosint, uma fábrica de tubos de aço e inúmeras incorporações imobiliárias no Rio.
Hoje, o máximo que o Brasil obtém de quem explora o jogo é alguma meia-sola em quadras de escolas de samba.
Também perdemos recursos no fluxo de turistas, que se encaminham para qualquer das centenas de resorts no mundo que, entre outros atrativos, oferecem o jogo como um de seus chamarizes. Os cassinos uruguaios, argentinos e chilenos agradecem a pouca inteligência envolvida na decisão brasileira.
Os prejuízos já são imensos nestas quase sete décadas. É urgente regulamentar os jogos de azar no Brasil, exigindo requisitos financeiros sólidos e a ficha-limpa de possíveis concessionários, como se faz com dirigentes de instituições financeiras.

NEY CARVALHO, 71, historiador, é autor de "A Guerra das Privatizações" (Editora de Cultura) e de "O Encilhamento: Anatomia de uma Bolha Brasileira" (CNB/Bovespa)

NÃO
Quem ganha são os donos do negócio, e só
Não acredito que a legalização do jogo traga benefícios para o país.
Ela tem sido defendida por interessados em explorar essa atividade altamente lucrativa. Defendem a oferta de empregos e os repasses de renda para o governo que a legalização pode gerar. No entanto, os prejuízos associados são muito superiores aos alegados benefícios e não podem ser negligenciados.
Jogos de azar são aqueles determinados em algum grau pela sorte e que envolvem apostas sobre seu resultado. São inúmeros os tipos de jogos existentes. A diferença entre eles tem implicações importantes.
A tecnologia aperfeiçoou alguns desses jogos, tornando-os mais atraentes e ágeis. A rapidez entre uma aposta e outra favorece a perda de controle, uma vez que o indivíduo não tem tempo para parar e pensar.
Sabe-se que a prática desses jogos pode provocar quadro similar ao de dependências de drogas, envolvendo os mesmos circuitos cerebrais.
O indivíduo passa a jogar cada vez mais, apesar das consequências negativas, na ilusão de ganhar ou de recuperar o que foi perdido.
Denominado jogo patológico, esse quadro passou a integrar os critérios diagnósticos de transtornos mentais (DSM III) em 1980 e vem sendo estudado desde então.
Os países que legalizaram jogos de azar vêm enfrentando diversos problemas. A prevalência de jogo patológico aumentou e passou a ser problema de saúde pública. Pobreza, baixa renda, aposentadoria precoce ou desemprego foram identificados como alguns dos fatores de risco para problemas com jogo.
Danos financeiros, legais, médicos e psicológicos relacionados ao jogo patológico estão documentados na literatura.
Sabe-se que jogadores patológicos cometem atos ilegais para sustentar a atividade, como empréstimos fraudulentos, falsificação de assinaturas, furto de dinheiro, cheques forjados e apresentam índices mais elevados de depressão, ansiedade, abuso de álcool, tabaco, sendo alto o risco de suicídio.
A patologia repercute sobre toda família, sendo elevado o número de divórcios. No trabalho, tornam-se comuns atrasos, absenteísmo e falta de concentração.
Não podemos desconsiderar a experiência recente no Brasil com a legalização, e posterior proibição, de bingos e jogos eletrônicos, como as máquinas de caça níquel.
A procura por tratamento refletiu a oferta de jogos no mercado. Em São Paulo, foram criados ambulatórios ligados às principais universidades que não davam conta de atender a demanda. Grupos de autoajuda, os Jogadores Anônimos, proliferam-se. Não existiam profissionais preparados para lidar com solicitações, que vinham de todo o país.
Com o fim dos bingos, diminuiu significativamente a procura por tratamento. Restam os que jogam em casas clandestinas ou pela internet.
A filosofia por trás dessa atividade também é discutível.
Em vez de se investir e desenvolver atividades que podem contribuir para melhorar a qualidade de vida, vende-se a ilusão de que a sorte será sua, você será premiado e ainda ajudará uma causa.
Hipocrisia, pois quem ganha são os donos do negócio -e quem paga é a população, que envelhece sem atividades de lazer apropriadas e acessíveis. No bingo, ninguém conversa, pois atrapalha o jogo. Nas maquininhas, a atividade é solitária. Cada um com (ou contra) o seu equipamento.
O ideal seria promover atividades de lazer, investir em atividades esportivas, educativas e culturais que estimulem uma vida interessante e saudável. Atividades que também geram empregos e ainda favorecem o desenvolvimento da população.
MARIA PAULA MAGALHÃES TAVARES DE OLIVEIRA, 46, é psicóloga. Doutora pela USP, fundou o Ambulatório de Jogo Patológico da Unifesp e escreveu "Dependências: o Homem à Procura de Si Mesmo" (Ícone)

Nenhum comentário:

Postar um comentário