segunda-feira, 12 de março de 2012

Poder da indústria farmacêutica e o exercício da medicina.

Médico não é garoto-propaganda

É cruel e macula a classe viajar à custa de laboratórios, sonegar impostos ('com recibo ou sem?'), cobrar 'por fora' do convênio e ganhar percentual por próteses
O novo Código de Ética Médica, em vigor desde abril de 2010, foi unanimemente saudado como um documento atual, abordando temas polêmicos com coragem e lucidez.
Foi, portanto, com tristeza e decepção que a sociedade brasileira tomou conhecimento de uma emenda a um ponto importante do código, sobre a relação dos médicos com os laboratórios farmacêuticos.
No artigo 69 do código de 2010, foi vedado ao médico "obter vantagem pelo encaminhamento de procedimentos, pela comercialização de medicamentos, órteses e próteses ou implantes, cuja compra decorra de influência direta em virtude de sua atividade profissional". A intenção era coibir essa relação indigna que denigre a categoria médica.
Na emenda divulgada na semana passada, o Conselho Federal de Medicina corrigiu a norma, sob a alegação lamentável de que não conseguiu conter a pressão dos laboratórios e de determinado segmento de médicos.
Agora, permanece a velha relação indigna entre médicos e laboratórios, tornando alguns profissionais -felizmente a minoria- garotos-propaganda comerciais.
Sou radicalmente contra essa prática, pelos seguintes motivos:
1) Os médicos são profissionais que têm, em geral, uma remuneração digna e suficiente para manter uma vida de boa qualidade.
Não precisam desses subterfúgios de ética duvidosa e às vezes ilegais: viajar às custas de laboratórios, sonegar imposto de renda em conluio constrangedor com os pacientes ("com recibo ou sem recibo?"), cobrar "por fora" em convênios de planos de saúde, receber percentual para colocar próteses indicadas especificamente, entre outros. Tais práticas maculam a categoria.
2) Afirmar, como foi feito na argumentação para a referida emenda, que os médicos não direcionam suas prescrições em função da prática de receber viagens gratuitas é de uma ingenuidade e de uma desfaçatez inaceitáveis.
Além de pesquisas já feitas em outros países que demonstram que ocorre efetivamente esse receituário dirigido, é uma dedução óbvia: os laboratórios visam, com essa prática, a fidelidade comercial.
3) O dado mais importante é que, no final das contas, quem vai pagar as viagens dos médicos são os pacientes, em situação de sofrimento físico e psíquico, muitas vezes incapacitados e frequentemente hipossuficientes. É uma crueldade inominável, pois o custo das viagens obviamente será repassado para o preço dos medicamentos.
É aceitável que sejam financiadas viagens relacionadas a pesquisas dos laboratórios feitas por médicos, necessárias à própria pesquisa ou destinadas a relatar em eventos médicos os resultados obtidos. É importante, entretanto, fazer ainda as ressalvas nesses casos, destinadas a evitar a simples propaganda de um produto comercial específico.
O Conselho Federal de Medicina deveria rever a emenda anunciada agora, retornando ao texto original do código de 2010. Se houver polêmica, sugiro realizar uma pesquisa de opinião entre os médicos brasileiros, que certamente irão apontar para a decisão de manter a categoria fora do conflito de interesses e reafirmar a dignidade profissional.

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